Alto da Bronze: imaginário sonoro de uma praça querida
2013
Marcello Campos
Jornalista e pesquisador

Não bastasse a mitologia em torno de seu nome, inspirado no apelido de uma suposta prostituta (e em seus predicados anatômicos), o recanto conhecido como Alto da Bronze – primeira praça estilo parquinho em Porto Alegre – foi eternizado em uma composição musical de quase oito décadas atrás. Trata-se de uma página meio desbotada na memória coletiva da cidade, mas que volta e meia ressurge no repertório boêmio da cidade.

Lançado pelos cantores Alcides Gonçalves e Horacina Correa em diferentes horários da programação de 19 de novembro de 1937, na Rádio Farroupilha, o samba estilizado Alto da Bronze foi o mais conhecido fruto da parceria entre duas figuras simbólicas da capital gaúcha daqueles tempos. Assinando a letra, o polivalente Plauto de Azambuja Soares, acadêmico de Direito, cronista de rádio e jornal, repórter da Folha da Tarde e dublê de compositor. Na melodia e arranjo, o pianista Paulo Coelho, o Gordo, um dos mais talentosos artistas de sua época e que seria lembrado também pela vocação endiabrada para pegadinhas, cujo alvo preferencial eram os colegas de profissão. Ele próprio, aliás, crescera naquele pedaço de maroteza encravado entre as ruas Duque de Caxias e Fernando Machado, quase na ponta do Gasômetro.

O sucesso local da novidade motivaria sua inclusão no repertório do instrumentista, cuja jazz band se preparava para um longa temporada pelos cafés e emissoras de Buenos Aires no semestre seguinte. Levado na bagagem, o número interpretado por Horacina Correa e o combo de onze músicos liderados por Paulo Coelho não apenas agradou aos hermanos, como acabou lascado na cera pela RCA-Victor argentina. O Rio Grande do Sul já não contava com nenhuma gravadora desde o fechamento da Casa A Elétrica. Então, não é difícil imaginar a festa com que aquele disco de 78 rotações foi recebido no retorno da trupe.

Plauto de Azambuja Soares não viveria a tempo de saborear a repercussão de Alto da Bronze. Na ensolarada tarde de 5 de abril de 1938, em meio à cobertura dos testes para um circuito automobilístico nas ruas do bairro Tristeza, o repórter participante decidiu entrar em uma das baratas concorrentes. O veículo acabou capotando em alta velocidade e a morte foi instantânea. Ele tinha apenas 23 anos. Seu colega Sadi Rafael Saadi (hoje nome de rua no Menino Deus) ficou gravemente ferido, mas sobreviveu para prosseguir sua trajetória no jornalismo policial.

Paulo Coelho, por sua vez, atuava em estações de rádio, boates, cafés e confeitarias. Atividade incansável que incluiu a sociedade em um bar nas imediações da Ladeira com a Rua da Praia. O “rival de si mesmo” (título informal que recebeu da imprensa, convicta da falta de concorrentes à altura) já era um dos nomes mais bem pagos do rádio porto-alegrense quando não resistiu às complicações de saúde agravadas pela tuberculose, na tarde de 21 de setembro de 1941. Sua certidão de óbito indicava inacreditáveis 31 anos de juventude.

Horacina Correa (1937)
No estúdio da Rádio Farroupilha, a cantora posa junto ao microfone, esta caixa de grandes proporções.
Fonte: Revista do Globo, Porto Alegre: Livraria do Globo, ano 9, n. 215, p. 15, 9 out. 1937.

Já a bela Horacina Correa, que em outubro de 1936 se casara com o ritmista Oscarino Correa em uma cerimônia transmitida ao vivo dos estúdios da Rádio Farroupilha, seguiria no final da década de 1940 para São Paulo e Rio de Janeiro, chegando a gravar discos e a atuar no cinema. Tempos depois, migrou para a Europa, sendo hoje desconhecido o seu destino. O jornalista Flávio Alcaraz Gomes afirmava tê-la visto como “artista cubana” em uma boate de Roma, nos anos 1950. Outros relatos sugerem que Horacina se radicou no Egito, como dona de um hotel no Cairo. Não falta nem mesmo uma versão de que a intérprete de Alto da Bronze teria morrido em um atentado terrorista.

Anos mais tarde, as gaúchas Elis Regina, Zilah Machado e Lourdes Rodrigues registrariam como samba-canção, cada qual à sua maneira, essa página saudosista, aqui reproduzida em seus versos:

Alto da Bronze,
Cabeça quebrada
Praça querida,
Sempre lembrada
A Praça Onze da garotada
Praça sem banco
Do rato branco
E do futebol
Da garotada
Endiabrada
Nas manhãs de sol
És a eterna lembrança
Do tempo feliz
Em que eu era criança
Do tempo em que a vida era
Da minha infância
A doce quimera
Hoje,eu pobre profano
Me lembro de ti
E dos meus desenganos
Oh meu Alto da Bronze
Dos meus oito anos…


Alto da bronze, de Paulo Coelho e Plauto Azambuja

Com Horacina Correa e a Jazz Band de Paulo Coelho (1938)
Do disco de 78 RPM gravado pela RCA Victor argentina.


Com Lourdes Rodrigues e Geraldo Flach (2001)
Da coletânea Um século de música no Rio Grande do Sul, organizada por Arthur de Faria e lançada em CD patrocinado pela Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE).


Com Zilah Machado (2001)
Da coletânea Porto Alegre é demais, produzida pela Prefeitura de Porto Alegre e lançada em CD patrocinado pela Companhia Zaffari.

Fonte: Acervo particular de Marcello Campos.

A versão de Alto da Bronze com Elis Regina pode ser escutada aqui.

Um comentário:

  1. Alto da Bronze, um marco dentro da história de Porto Alegre.
    E esta composição vem coroar, com grande maestria a história desta grande cidade.
    Porto Alegre, parabéns pelos 249 anos.

    Luís Cláudio Lopes Soares

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