Golpe de 1964: da censura à falta de humor
2006
Luiz Artur Ferraretto

Porto Alegre amanhece com os militares na rua (1º de abril de 1964)
Fonte: Revista do Globo, Porto Alegre, ano 36, n. 872, p. 36, 9-22 maio 1964.

Na segunda metade dos anos 1960 e ao longo da década seguinte, a intervenção dos golpistas de 1964 na vida nacional estende-se por todas as manifestações culturais. A censura – com frequência, prévia – atinge, assim, também a parte da programação radiofônica dedicada ao entretenimento. Neste caso, os censores consideram, conforme João Bispo da Hora, “a moral e os bons costumes”. Sob este viés, são analisados os roteiros das poucas atrações radiofônicas ainda dedicadas à dramatização e ao humor. De acordo com o ex-chefe do Departamento de Censura Federal no Rio Grande do Sul, busca-se, na época, não apenas proibir a veiculação, mas também determinar o horário adequado para a transmissão:

– Então, se fazia a análise de uma radionovela, por exemplo, procurando adequá-la a um horário que tivesse uma influência mais benéfica ou menos benéfica para uma determinada faixa etária [...] A censura prévia de diversões públicas tinha este sentido. Proibia alguma coisa quando ofendia os costumes, assim, de uma maneira violenta para o que se pensava na época, questão de alusão à droga, ao tóxico, ao sexo...

É o que acontece com a radionovela Meu Pai, Qual o Caminho Certo?, última grande produção do gênero no Rio Grande do Sul. A estreia marcada para o dia 10 de maio de 1971, às 13h20, só acontece, no entanto, uma semana depois e às 23h30. Considerada pelo Departamento de Censura Federal muito forte para o horário vespertino, a novela tem de ser transferida às pressas para o fim de noite, sendo substituída, no início da tarde, pela bem menos polêmica As Últimas Flores de Verão, de Maria Monteiro Paneraí.

Outro episódio envolvendo a censura prévia ocorre na Continental, emissora voltada ao público universitário. O alvo é o programa Horóscopo da Pesada, uma sátira bem-humorada às atrações zodiacais de rádios mais populares ou ecléticas e ao cotidiano de um país sob ditadura militar, a começar pelo astrólogo Hermano Cano, interpretado pelo próprio diretor da rádio, Fernando Westphalen. Na época, as previsões de cunho futurológico do cientista político Herman Kahn, do Hudson Institute, de Nova Iorque, fazem sucesso no Brasil do “Ame-o ou deixe-o”, propalado pelo ufanismo da propaganda oficial a justificar o ostracismo das lideranças do governo de João Goulart e da oposição armada. Se Kahn é, então, uma espécie de arauto do liberalismo, a sua versão gaúcha prefere fazer previsões considerando um zodíaco muito especial com um signo além dos 12 da astrologia tradicional – o do exílio –, como explica o redator do programa, Eloy Terra:

– Nós críamos o 13° signo. Quando estava tudo ruim, o ouvinte podia se refugiar nele. Às vezes, como a gente não tocava Roberto Carlos, Wanderléia, estas coisas, colocava: “Amigo, hoje, a coisa tá tão ruim, mas tão ruim, que, não só tu, como todas as pessoas, por tua causa, vão sofrer. Elas vão ter agora de aguentar dois segundos de Wanderley Cardoso”. E aí botava aquela música que nós julgávamos cafona. “Desculpe, não era nada com vocês. Era tudo com aquele cara deste signo. Se tiver alguém aí deste signo, é ele o culpado.”.

Submetida à censura prévia, a produção do Horóscopo da Pesada exige cuidados redobrados. Por uma ou duas palavras julgadas subversivas ou inconvenientes, os censores proíbem o texto na íntegra. Em uma destas ocasiões, Eloy Terra tem de reescrever o roteiro, rapidamente, das 11 às 12h20, horário do programa. Irritado com o censor Clóvis Arruda, que impõe o veto devido à expressão “sem frescura”, considerada atentatória à moral, o redator rebatiza o 13° signo com o sobrenome do agente da PF. Pressionado, em função disto, ainda mais pela Polícia Federal e preocupado pela queda na qualidade devido às improvisações de última hora provocadas pela censura, Fernando Westphalen acaba cancelando o Horóscopo da Pesada.

Na primeira metade da década de 1970, este e outros episódios indicam que a Continental é, de fato, a rádio de Porto Alegre mais visada pelos órgãos encarregados da repressão. Outros casos de censura na emissora envolvem o escritor Luis Fernando Verissimo, cujas crônicas fazem com que, vez ou outra, Fernando Westphalen seja obrigado a comparecer à Polícia Federal. Em uma delas, trava um duro diálogo com o superintendente da PF no Rio Grande do Sul, coronel Luiz Macksen de Castro Rodrigues, que tenta explicar a sua contrariedade em relação a um comentário favorável ao cantor e compositor Chico Buarque:

– Olha, o senhor tem de compreender, Chico Buarque de Hollanda e Luis Fernando Verissimo são uns recalcados devido ao sucesso dos pais [referência ao historiador Sérgio Buarque de Hollanda e ao escritor Erico Verissimo]. Então, fazem estas coisas agressivas, subversivas... Vocês não podem dar guarida a isto, porque isto não é arte.

Aproveitando a voz privilegiada, em adequado tom grave, Fernando Westphalen retruca:

– Coronel, vamos combinar o seguinte: o senhor pode falar para mim de censura, de segurança, de guerra e eu aceito e respeito, mas não fale de arte e de música que isto, o senhor tenha paciência, eu sei que o senhor não sabe e está dando prova agora. Então, vamos deixar assim. Agora, veja bem, se deixarem, eu continuo tocando Chico e colocando os textos do Verissimo no ar.

O escritor, inclusive, tem uma crônica sobre a Teoria da Evolução, de Charles Darwin, censurada:

– Talvez tenham deduzido que evolução lembrava macaco, macaco lembrava gorila, e gorila lembrava militar, e eu estava usando Darwin para algum fim subliminar – recordaria em entrevista à revista Aplauso.

Na época, por determinação do governo, as transmissões da rádio vão ser suspensas várias vezes. Um destes atos extremos de repressão à liberdade ocorre no sábado, 25 de agosto de 1973, Dia do Soldado, portanto uma data muito valorizada no calendário militar. O redator de plantão na Continental, Oscar Schneider, no estilo do informativo 1.120 é Notícia, encadeia as informações, relacionando os prêmios da Exposição Internacional de Animais (Expointer), em Esteio, e a entrega, junto ao Monumento ao Expedicionário, em Porto Alegre, da medalha do Pacificador a várias personalidades do regime, entre elas o delegado Pedro Seelig, do Departamento de Ordem Política e Social (Dops). Pegando as condições meteorológicas como mote, escreve em um trecho do noticiário:

Porto Alegre amanhece com os militares na rua (1º de abril de 1964)
Fonte: Revista do Globo, Porto Alegre, ano 36, n. 872, p. 36, 9-22 maio 1964.

Chamar de “latinha” umas das condecorações mais caras à caserna vai render a apreensão do cristal do transmissor da rádio, fazendo com que a emissora fique três dias fora do ar. Os militares, de fato, não tinham o mínimo senso de humor.

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