Nelson Cardoso e o Banca de Sapateiro
2006
Luiz Artur Ferraretto

Nelson Cardoso (1958)
Fonte: Revista TV, Porto Alegre, ano 4, p. 14, mar. 1958.

Nos anos 1950, o cotidiano urbano de Porto Alegre constitui-se na principal referência para o humor de uma das grandes atrações do rádio do Rio Grande do Sul. É o programa Banca de Sapateiro, criação de Nelson Cardoso, que aproveita o talento de Walter Broda para compor um personagem – profissional de couros, saltos e meias-solas – de voz característica, de início, em um meio termo luso-germânico, refletido no nome Franz Peter Barbosa, mas, com o tempo – e muito mais comicidade –, de predominante acento alemão. Na época, como registra Demóstenes Gonzalez no jornal Diário de Notícias, o programa, ao mesmo tempo em que faz rir, “funciona como o 22º vereador de Porto Alegre”, a denunciar, de modo satírico, problemas no calçamento das ruas, a ausência de iluminação nos bairros, a inexistência de policiamento, o deficiente abastecimento de água...

Na segunda-feira, dia 7 de agosto de 2006, morreu o Nelson Cardoso que mobilizava tantas atenções cinco décadas atrás. Já não tinha a mesma influência e, é bem provável, era um desconhecido para as novas gerações que saem aos borbotões dos bancos universitários. Estas também não sabem, mas talvez lhe falte o brilhantismo e a criatividade deste profissional. Brilhantismo e criatividade presentes, por exemplo, no último grande trabalho de Nelson Cardoso no rádio. Foi, com certeza, na Rádio Gaúcha em meados da década de 1980. A pedido de Flávio Alcaraz Gomes, então responsável pela emissora do Grupo RBS, produziu uma série de programas e relembrou, com detalhes, a história da radiodifusão sonora neste canto do país.

No humorístico, conforme recordou o próprio Cardoso em entrevista ao Projeto Vozes do Rádio da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, um bordão marca, na época, as críticas em torno das quais giram os enredos transmitidos pela Farroupilha:

– Então, o alemão, ele batia prego, batia prego... Literalmente, batia, porque ele levantava a sola do sapato, e batia com um ferrinho ou uma vara. Batia na sola do sapato para produzir um efeito. Batia na sola e, enquanto batia, dizia: “Entra preguinho, entra preguinho desgraçado...”. Se fosse hoje [final da década de 1990], ele diria: “Parece mentira que ninguém acerta o orçamento deste país. Parece mentira que ninguém é capaz de segurar o tigre que tá solto pelas ruas deste país. Tá se matando gente como mosca. Entra preguinho, entra preguinho desgraçado...”. Então, ele fazia um comentário-base, editorial, que dava, então, o acesso aos outros personagens do programa.

A partir daí, interagiam o negrinho engraxate, na voz de Fábio Silveira a repetir outra frase de efeito – “Graxa, graxinha, vem chegando freguês...” –; o cliente chato e reclamão, vivido por Nelson Silva; o metido Doutor Superlativo, um pretensioso homem de meia idade, papel de Antônio Diniz; e a casamenteira Clarinda, uma pilantra solta na vida e procurando se ajeitar, interpretada por Nelita Aguiar. É o diálogo entre esta personagem feminina e o alemão Franz, tratado por ela de forma pretensamente carinhosa, que encerrava as conversas habituais no balcão da sapataria:

– Mas afinal, Barbosa, depois de todo esse papo aqui, quando é que a gente casa? A gente casa ou não casa?

Pergunta insinuante respondida, com ironia, pelo sapateiro de origem alemã em seu português gutural – de erres reforçados e tils anasalados – aproveitando ainda para salientar o tom de sátira do programa, ao destacar algum problema do cotidiano:

– Tá, Dona Clarinda, a gente casa, a gente casa, mas só depois que não acontecer nenhum assalto nas ruas de Porto Alegre.

Sinal de que o problema da segurança é mesmo antigo na capital gaúcha.

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