O surgimento e a consolidação da frequência modulada
2014
Luiz Artur Ferraretto


Episódios isolados, que não diferem na essência de outros registrados no centro do país, ilustram bem os primórdios da frequência modulada no Rio Grande do Sul. Exemplo disto é a própria forma – quase clandestina – como entra no ar a Itaí FM, a primeira a transmitir uma programação exclusiva nesta faixa do espectro radioelétrico no estado. No início dos anos 1970, em uma viagem à Europa, o empresário Lorenzo Gabellini conhece as possibilidades comerciais proporcionadas pela melhor qualidade sonora da irradiação em FM, qualidade que, ele sabe, pode ser ainda mais aprimorada pela estereofonia. De um lado, portanto, a modulação de frequência, por não sofrer interferências significativas, permite a emissão e a recepção em nível muito superior à das ondas médias, apesar do alcance limitado a um raio máximo de 100 km. De outro, há a perspectiva do som estereofônico à semelhança dos dispendiosos aparelhos de alta-fidelidade – toca-discos e gravadores de rolo –, de posse restrita, então, a poucas pessoas. A reprodução com esta espécie de relevo acústico em, pelo menos, duas caixas de som indica a profissionais como Gabellini o caminho musical da programação, com os receptores de FM integrando-se aos Hi-Fi, à época os equipamentos mais cobiçados do mercado de eletroeletrônicos.

De fato, dois anos antes, em dezembro de 1970, quando a Difusora FM, de São Paulo, entra no ar, constituindo-se na pioneira do país a transmitir, comercialmente e com exclusividade, em frequência modulada, esta rádio dos Diários e Emissoras Associados já se anuncia, como registra a revista Veja, com uma programação de músicas “selecionadas para pessoas ricas e inteligentes”. O FM vai ter, portanto, a sua trajetória, nesta fase inicial, marcada pela pecha de “rádio dos ricos”, título da mesma reportagem.

Além disto, há ainda, o interesse do governo militar em incentivar a implantação de emissoras de frequência modulada. De baixa potência e alcance geográfico reduzido, o FM encaixa-se com perfeição na estratégia da ditadura para acabar com as áreas de silêncio existentes no território nacional, procurando contrabalançar, assim, a influência das transmissões em ondas curtas dos serviços em português de estações internacionais, muitas delas do bloco comunista, que, em algumas regiões do país, são, então, os únicos sinais de rádio disponíveis. No contexto mundial da Guerra Fria, a um Brasil alinhado aos Estados Unidos, não interessa que sejam captadas emissoras como as rádios Moscou, da União Soviética; Havana, de Cuba; Pequim, da República Popular da China; ou Tirana, da Albânia. Não interessam também irradiações como as da British Broadcasting Corporation (BBC), de Londres, que descrevem a realidade de um Brasil submetido ao cerceamento das liberdades individuais. Do ponto de vista político, na distribuição dos canais vai pesar, ainda, a troca de interesses entre o poder concedente e os empresários beneficiados pela outorga das permissões para execução dos serviços de frequência modulada.

É neste contexto que Lorenzo Gabellini viaja a Brasília e, em uma reunião com o ministro das Comunicações, o coronel da reserva Hygino Caetano Corsetti, trava um diálogo revelador da situação quase experimental do FM, conversa por trás da qual se entrevê também o interesse do regime na implantação das estações:

– Ministro, o senhor está para mudar de FM para uma outra faixa de VHF os links, que fazem a conexão dos estúdios com os transmissores, que é o caso da Itaí. Escute, posso botar uma emissora em frequência modulada já que tenho a licença para o link?

– Mas a licença proíbe propaganda – responde o ministro como a esperar uma reação por parte de Gabellini.

– E se eu botar só com música, dando o prefixo a cada 15 minutos: “ZYU-33 – Rádio Itaí FM”?.

– Vamos fazer o seguinte: eu não lhe dei autorização de nada, mas meus parabéns... E eu desconheço.

Com o beneplácito da autoridade constituída, a Itaí FM inicia suas operações, no primeiro semestre de 1972, com um transmissor Phillips, de 1.250 W, direcional, irradiando das 7 às 24h, a partir do Edifício Chaves Barcellos, na rua dos Andradas, 1.155. Em um primeiro momento, a abrangência é pequena, tanto pelo alcance como pela existência de poucos aparelhos de rádio com faixa de FM. Em novo contato com o ministro das Comunicações, Gabellini ouve uma espécie de senha para que, na seqüência, pleiteie uma licença a título precário:

– A experiência foi muito boa para conhecermos o sistema. Continuo não te conhecendo, mas pede um aumento de potência – observa Hygino Corsetti.

Assim, em maio de 1973, a Itaí intensifica as suas irradiações em frequência modulada, solicitando, inclusive, em anúncios na imprensa de Porto Alegre, que os ouvintes deem informações sobre a qualidade do seu sinal. Passa, também, a incluir um comercial a cada duas músicas.

Anúncio da Rádio Itaí FM (maio de 1973)
Fonte: Correio do Povo, Porto Alegre, 20 maio 1973. p. 3.

Gabellini aproveita, deste modo, a recente regulamentação dos serviços de radiodifusão pela Portaria n. 333, assinada por Hygino Corsetti, um pouco antes, no dia 27 de abril de 1973, e que tinha como objetivo básico coordenar a expansão do rádio e da TV, incentivando a instalação de estações de FM e de ondas tropicais, além de dotar cada município do país de, pelo menos, uma emissora. Na mesma data, a Secretaria Geral do Ministério das Comunicações, em sua Portaria n. 57, aprova o Plano Básico de Distribuição de Canais de Freqüência Modulada, que inclui 20 municípios do Rio Grande do Sul entre os passíveis de instalação de FMs.

Já com a Itaí FM operando nos 95,7 MHz, um Gabellini inspirado pelas históricas obras de arte da Cidade Estado do Vaticano, onde ele, filho de um funcionário da Santa Sé, havia crescido, escolhe um detalhe do afresco da Capela Sistina, retratando o Juízo Final para ilustrar a tabela comercial da rádio. No fragmento da pintura do toscano Michelangelo Buonarotti, anjos com suas trombetas celestiais são a imagem apropriada para identificar uma estação cuja música erudita – sinfônica ou lírica –, com algumas concessões ao popular romântico, aproveita o som cristalino proporcionado pela qualidade das transmissões em frequência modulada, poderoso diferencial em relação às rádios em ondas médias. A imagem clássica passa, ainda, a ideia de uma programação voltada para um ouvinte adulto das classes socioeconômicas A e B, na época, o público-alvo do FM, cujo conteúdo segue este esquema de suaves orquestrações, a chamada música ambiente.

Capa da tabela comercial da Rádio Itaí FM (meados dos anos 1970)
Fonte: Acervo particular de Lydia Theresa Miotto Gabellini.

Aberta à possibilidade de utilizar os equipamentos de enlace por FM, tornados ociosos pela obrigatoriedade do uso de outras faixas de VHF para estes serviços auxiliares de radiodifusão, a experiência da Itaí vai ser seguida pelas rádios Metrópole e Difusora – ambas com planta transmissora em Canoas – e Cultura – cuja antena irradia de Gravataí –, que, de início, apenas mantêm os antigos links, retransmitindo a programação de suas estações de amplitude modulada. Ao mesmo tempo, gradativamente, os receptores de FM vão se tornando novos objetos de consumo, como registra, na época, em tom quase didático, Dionísio Reis, em uma coluna especializada em rádio e televisão do Jornal do Comércio:

A Phillips tem três modelos de rádio à venda, para recepção em FM. O modelo para automóvel está na base de Cr$ 600,00; um rádio sintonizador, com amplificador, para mesa, modelo bastante sofisticado, por aproximadamente Cr$ 1.200,00; e o radiogravador, pelo mesmo preço. Na linha de radiofones (móveis grandes), diversos dos modelos da Phillips estão equipados para recepção em FM.A Casa Coates – consultada pelo colunista – informa que está vendendo muito bem esses rádios para recepção em FM. Aliás, a propósito, um parêntese: esses receptores recebem, perfeitamente, transmissões em ondas médias e curtas também. Mas um receptor que seja exclusivamente para esses dois tipos de ondas não capta as transmissões em FM.

Mais informações da Casa Coates – que não vende modelos para automóveis. O aparelho Philco, a luz ou pilha, está por volta de Cr$ 1.000,00, com desconto de 10% para as compras à vista. O rádio National, com gravador, custa Cr$ 1.460,00, também com desconto de 10%, se o pagamento for feito no ato.

A nova tecnologia, no entanto, está disponível apenas para as classes A e B. Como referência, observa-se que o salário mínimo é, então, de Cr$ 312,00. Os receptores, custando até quase cinco vezes este valor, podem ser considerados caros para a época. Mesmo assim, em 1974, já existem 30 mil aparelhos deste tipo em Porto Alegre. O maior número de ouvintes concentra-se em escritórios, consultórios ou estabelecimentos comerciais como bares e restaurantes, para os quais se destina a programação de música ambiente. Os resultados comerciais, por sua vez, não são nada alentadores. Com pouca publicidade, a sobrevivência econômica da Itaí FM, rodando apenas quatro comerciais por hora, depende do desempenho de sua coirmã homônima em amplitude modulada.

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