Lauro Hagemann: os 60 anos de profissão do Repórter Esso gaúcho
2006
Luiz Artur Ferraretto

Lauro Hagemann (anos 1950)
Fonte: Acervo particular de Lauro Hagemann.

Os quadros ainda estão ali na parede. No pequeno apartamento de Lauro Hagemann, as lembranças de uma viagem à União Soviética refundam a convicção de militante comunista, do radialista que, ao completar 60 anos de carreira, é um dos profissionais mais respeitados do Rio Grande do Sul. O mais famoso locutor da edição gaúcha do Repórter Esso guarda, ainda, outras fotos, outras recordações. Lembranças que vão das primeiras experiências ao microfone, ainda em Santa Cruz do Sul, sua cidade de origem, à vida pública nas últimas décadas.

Aos 15 anos, entre aulas no Colégio Mauá e jogos de basquete no Corinthians Sport Club, Lauro começa a se aproximar do pessoal do Serviço Alto-falante Santa Cruz Estúdio, também conhecido como Som Azul, uma voz-do-poste que vai fornecer boa parte dos funcionários da primeira emissora da cidade. Em uma noite de 1946, alguém falta ao trabalho no Som Azul e, de forma meio improvisada, Hagemann é convidado a ler alguns textos ao microfone. A inauguração da Rádio Santa Cruz do Sul, das Emissoras Reunidas, de Arnaldo Ballvé, acaba impulsionando o seu início de carreira. Como a maioria do pessoal da voz-do-poste transfere-se para a nova estação, Lauro Hagemann passa a trabalhar das 19h30 às 21h no sistema de som, anunciando músicas e lendo textos comerciais. A voz do novato acaba chamando a atenção e, após um teste, a fase profissional chega em 1º de junho de 1946:

Na Rádio Santa Cruz do Sul, fiz de tudo: locução, radioteatro... A única coisa que não fiz foi narrar futebol, mas tênis, bolão... Transmitíamos até jogo de bolão... Foi uma disputa de bolão entre um cachoeirense e um santa-cruzense que, diziam, eram os maiores bolonistas. Foi em Cachoeira do Sul.

No mesmo ano, Lauro termina o ginasial e começa a pensar em se transferir para Porto Alegre, onde pretende cursar Direito. Trabalha ainda mais um pouco na rádio no ano seguinte. Serve ao Exército, sem se desvincular totalmente da emissora, em 1948. A transferência para Porto Alegre só acontece em fevereiro de 1950, quando faz um teste na Rádio Gaúcha e é reprovado. De passagem pelo estúdio, Milton Vergara Côrrea escuta o jovem locutor e oferece trabalho na Rádio Progresso, de Novo Hamburgo.

O gozado é que fui reprovado pelo Graça Guimarães, Adroaldo Guerra e Ivan Castro, que, anos depois, se transformariam em grandes amigos e companheiros, tanto que fundamos juntos o Sindicato dos Radialistas.

Em abril de 1950, inscreve-se no concurso organizado pela Farroupilha, emissora do Repórter Esso em Porto Alegre; pela Standard Oil Company of Brazil, patrocinadora do noticiário; e pela McCann-Erickson, agência detentora da conta publicitária da companhia petrolífera. Na realidade, sem experiência no rádio de Porto Alegre, a esperança de Lauro é obter uma vaga como locutor comercial aberta por alguém do quadro fixo da emissora que fosse escolhido para o Esso. Para sua surpresa, a escolha recai sobre ele. Honraria significativa na época, Hagemann inicia sua trajetória à frente do informativo no dia 1º de junho de 1950. Em pouco tempo, o público do Sul do país vai se acostumar com a correta inflexão:

– Prezado ouvinte, bom dia. Aqui fala o Repórter Esso, testemunha ocular da história, apresentando as últimas notícias da UPI.

Pouco a pouco, Lauro Hagemann vai se transformando no principal locutor noticiarista de sua geração. Em paralelo, desenvolve intensa militância política, que o aproxima do Partido Comunista. A aparente contradição vai ser contornada com profissionalismo. Não se pode esquecer que o Repórter Esso surgiu para amparar os interesses dos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial, substituindo, após o final do conflito, o nazismo pelo comunismo, novo inimigo dos interesses da Casa Branca.

O condicionamento dava-se a partir da fonte, a United Press International. Todo o noticiário era visto a partir do ângulo dos Estados Unidos. Eu me lembro de uma campanha violenta do Esso, quando as refinarias de petróleo iranianas foram nacionalizadas. Aí, foi aberta e franca a guerra contra o nacionalismo iraquiano. Durante a Campanha do Petróleo é Nosso, então, o assunto foi simplesmente ignorado. Nesta época, a Standard Oil Company foi nacionalizada. Passou a ser a Esso Brasileira de Petróleo. Mudou o nome. Quando começou a campanha, começou também este processo de mostrar a Esso como uma empresa brasileira. No subliminar, ficava esta noção. O público começou a ver a Esso não como um bicho-papão que queria o nosso petróleo, mas como uma empresa que pretendia ajudar o Brasil. Tanto é que a criação da Petrobras, em 1952, passou raspando. Ninguém enalteceu nem puxou para as manchetes.

A qualidade profissional, o caráter de Hagemann e a credibilidade conferida por ele ao Repórter Esso servem, então, como uma poderosa barreira a reduzir pressões, não que estas deixassem de ocorrer:

Eu sempre tive problemas com a Esso. Volta e meia, baixava uma delegação deles para me cobrar umas coisas. Eu fui presidente da União Estadual dos Estudantes. Nós fizemos um comício no Largo dos Medeiros, que terminou em uma baita pancadaria em 1955, logo depois da crise do Lott, Café Filho e Lacerda. Os americanos estavam em cima querendo amordaçar o Brasil. Eu, como dirigente estudantil, fazia comício contra isto. Um dia, inauguraram a torre da Petrobras na Praça da Alfândega, comemorando a vitória do Petróleo é Nosso. Eu, como dirigente estudantil, fui lá discursar. Aquilo gerou pressão. E eu dizia para eles, os patrões: “Eu vendo meu trabalho. Não vendo a minha consciência.”

É a credibilidade de profissional de rádio e a militância crescente que Lauro Hagemann empresta à Rede da Legalidade, quando se apresenta nos porões do Palácio Piratini para defender a posse de João Goulart como presidente do Brasil:

Com a Legalidade, a Farroupilha fica fora do ar. Só a Guaíba transmite, requisitada pelo governador Brizola. Em um primeiro momento, os cristais dos transmissores de todas as emissoras, exceção da Guaíba, foram retirados. Depois, elas conseguiram voltar a transmitir já em cadeia com a Guaíba. O noticiário da Legalidade era transmitido pelo pessoal do Palácio Piratini. Tinha apenas um locutor lá, o Naldo Charão de Freitas. Então, eu me apresentei. Foi sopa no mel. O Repórter Esso [o locutor] transmitindo na Cadeia da Legalidade...

Logo depois, até como reflexo da mobilização crescente na sociedade em geral e na categoria de modo mais específico, Lauro ajuda a fundar o Sindicato dos Radialistas, assumindo a presidência da entidade e liderando uma bem-sucedida greve. Na sequência, vem o golpe militar de 1964. Em 31 de dezembro daquele ano, o Repórter Esso é transmitido pela última vez na Farroupilha, fato lembrado com amarga ironia: “Cumprido o seu papel, saiu do ar”.

Em 1963, Lauro concorre pela Aliança Republicano Socialista, uma fachada do PCB. Depois, após o golpe, entra para o Movimento Democrático Brasileiro. O deputado estadual tem seu mandato cassado no dia 13 de março de 1969.

Dias depois, abre um concurso para locutor comercial na Rádio Guaíba. Eu estava com um processo contra mim na justiça do trabalho, por ter promovido uma tentativa de greve nos Associados. Havia sido posto na rua em 1968 por isto. Estava, portanto, desempregado. Fui conversar com o doutor Breno Caldas [proprietário da Guaíba e dos jornais Correio do Povo, Folha da Tarde e Folha da Manhã] para saber se não havia inconveniente nenhum em me inscrever no concurso. Fui um dia à noite lá. O doutor Breno chegou e eu me apresentei. Perguntei para ele isto, então. Estávamos no meio da redação do Correio do Povo. Já haviam me prevenido que, se ele não me quisesse lá, na hora me daria a resposta negativa. Agora, se dissesse que eu voltasse em outro dia, era quase 99% de chances de estar empregado. E foi o que aconteceu. Ele disse: “Passa aqui amanhã”. Claro que ele queria trocar ideia com outras pessoas. No dia seguinte, uma sexta-feira, fui lá. Conversamos por mais de uma hora. Disse para ele que, se tivesse de fazer tudo de novo, eu faria, porque não havia feito por mim, mas pela categoria. Ele me disse: “Bom, tu vens trabalhar conosco. Enquanto formos donos da empresa, sempre haverá lugar para gente como tu”.

Dos anos 1970 até a atualidade, passando por outras emissoras, outros cargos públicos, outros partidos, mas sempre dentro do campo da sua consciência política e de sua ética pessoal, Lauro Hagemann segue como uma referência. Não é só para os radialistas e jornalistas, militantes ou não. Em meio a candidatos de ocasião, corruptos deslumbrados com novos poderes e profissionais da política de convicções voláteis, Lauro Hagemann serve como um diferencial e uma esperança, esperança de que surjam outros como ele: vertebrados para não se curvarem ante as imposições dos superiores e nunca dispostos a ceder nem um pouquinho quando o assunto é caráter. Em meio às fotografias antigas, independente de sigla partidária, Lauro Hagemann, tendo honrado preceitos e convicções com humanismo, ainda pode encarar tranquilo o Karl Marx que lhe sorri, em resposta, da parede.



Lauro Hagemann
Entrevista realizada por Luiz Artur Ferraretto em 3 de agosto de 1999.

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