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Pery e Estelita: o surgimento do radioteatro gaúcho
2005
Luiz Artur Ferraretto

É setembro de 1999 e, no apartamento acanhado em pleno centro do Rio de Janeiro, a dona Esther Daniotti, com seus 80 e muitos anos, como prefere definir a idade, ainda olha com o mesmo carinho das décadas de 1930 e 1940 a caixa de onde transbordam lembranças e dezenas de cartas de ouvintes da PRH-2 – Rádio Sociedade Farroupilha, de Porto Alegre. Não só de apreciadores. O que mais atesta o sucesso dela, que ninguém conhecia pelo nome de batismo, são as folhas amareladas, algumas manuscritas, outras datilografadas, escritas por enfurecidos donos de cinema de toda a Região Sul. Também pudera, a grita é geral. Aos domingos à noite, o Teatro Farroupilha, liderado por ela, a Estelita Bell, e por seu marido, o Pery Borges, bate com vantagem qualquer outro entretenimento. É a nossa segunda entrevista, já que, um pouco antes, havíamos conversado por telefone. O apartamento – pequeno, contrastando com a enorme popularidade dela e do marido décadas antes – não me sai da memória.

Pery e Estelita apresentam-se no quarto aniversário da Rádio Farroupilha (1939)
Fonte: Acervo particular de Estelita Bell.

Dona Esther se foi este ano, ganhou algumas notas nos jornais e até, por ser atriz do elenco da Rede Globo de Televisão, menção no Jornal Nacional. Se fosse há 70 anos, sua morte comoveria milhares de pessoas. A dupla Pery e Estelita era, então, a atração mais famosa do rádio do sul do país. Nas décadas seguintes, ainda brilharia ao microfone da Mayrink Veiga, no Rio de Janeiro.

Natural de Jaguarão, a 380 km de Porto Alegre, Luiz Pery Borges entra para a Companhia Procópio Ferreira em 1932, como ponto, quando o grupo teatral do maior ator do país na época fazia temporada na capital gaúcha. Três anos depois, casa-se com a carioca Esther Daniotti, que, substituindo o sobrenome do pai pelo da mãe, a atriz Renée Bell, transformara-se em Estelita Bell. Naquele mesmo 1935, no dia 29 de novembro, radicando-se no Rio Grande do Sul, estreiam ao microfone da Rádio Difusora Porto-alegrense com sketches. O cenário radiofônico dos anos 1930 permite que, sem sair da PRF-9, de Arthur Pizzoli, os dois estreiem também na PRH-2, da família Flores da Cunha, logo em seguida. No dia 6 de janeiro de 1936, Pery e Estelita passam, então, a se apresentar na Difusora, às segundas, quartas e sextas, enquanto, na Farroupilha, aparecem às terças, quintas e sábados. Meses depois, graças ao sucesso obtido pela encenação de trechos da vida de Jesus Cristo, durante a Semana Santa, Luiz Guerra Flores da Cunha contrata a dupla com exclusividade.

Boa parte do sucesso da PRH-2 pode ser atribuído ao trabalho de Pery e Estelita, em especial pela criação do Teatro Farroupilha em 1937, o segundo programa do gênero lançado no país, como lembraria seis anos mais tarde o jornal Diário de Notícias:

Quando da fundação do atual conjunto de Pery e Estelita, só existia, no Brasil, um teatro do mesmo gênero, dirigido por Manoel Durães, em São Paulo. Em 1937, então, surgiu o Teatro Farroupilha e, logo após, o Teatro nos Ares, da Mayrink Veiga.
A iniciativa de apresentar uma peça inteira foi do diretor da PRH-2, Arnaldo Ballvé, que sugeriu a ideia à dupla dentro das comemorações programadas pela Farroupilha para a Semana da Pátria de 1937. A escolha recaiu sobre Deus lhe pague, de Joracy Camargo, também da Companhia Procópio Ferreira, encenada, pela primeira vez, cinco anos antes. A denominação do programa surgiu quase por acaso, como contaria Estelita Bell, naquela tarde de 1999, folheando suas recordações:

– Ninguém cogitou de dar um nome mais geral para a apresentação de Deus lhe pague. Na hora, o Antonacci Rabello, que era o locutor, é que batizou: “Está no ar, agora, o Teatro Farroupilha”. Na hora! São destas coisas da vida. Da vida e do rádio da época.

Conforme um anúncio comemorativo do Café Carioca, à época patrocinador do Teatro Farroupilha, no sexto aniversário do programa, em 1943, a dupla Pery e Estelita já contabiliza um saldo de 278 peças apresentadas, a maioria – 180 – comédias. Predominam ainda os textos nacionais – 173. No total, parcela significativa – 128 – é inédita no Rio Grande do Sul, sendo 47 obras nunca antes encenadas no país. Seis anos antes, em 1939, a PRH-2 registra nas noites de domingo, graças ao radioteatro, um público de 23 mil ouvintes em Porto Alegre, aproximadamente 10% da população da capital gaúcha na época.

De 1937 a1945, a rotina de produção do Teatro Farroupilha não se altera. Pery Borges encarrega-se das adaptações, por vezes selecionando obras de escritores consagrados – O Guarani, de José de Alencar, encenada em 6 de janeiro de 1940, é um exemplo – ou em evidência na época – caso do norte-americano John Steinbeck e do seu Noite sem lua, livro radiofonizado em 4 de abril de 1943.

Apresentação de O Guarani, adaptação de Pery Borges para a obra de José de Alencar
(setembro de 1938)
Fonte: Acervo particular de Estelita Bell.

Trecho do roteiro de O Guarani (6 de janeiro de 1940)
Fonte: Acervo particular de Estelita Bell.

Roteiro pronto, as cópias são datilografadas com o auxílio de papel carbono e distribuídas ao elenco. Cada ator ou atriz tem, então, alguns dias para estudar o seu papel. Em paralelo, Pery Borges, com o auxílio dos técnicos em sonoplastia, acerta as trilhas musicais e os efeitos sonoros necessários. Nos finais de semana, à tarde, ocorrem os ensaios, em geral dirigidos por Estelita Bell. O resultado do trabalho pode ser conferido nas noites de domingo.

Na PRH-2, Pery e Estelita trabalham durante nove anos e três meses. Seu sucesso radiofônico permite que passem algum tempo em turnê pelos teatros do Rio Grande do Sul. Na sequência, transferem-se para o Rio de Janeiro, onde integram o cast da Rádio Mayrink Veiga. Os dois voltam ao estado, em 1950, durante uma breve temporada na Gaúcha, por iniciativa de Cândido Norberto Santos. No entanto, para o público do estado, a atuação da dupla fica marcada pelo Teatro Farroupilha, apresentado nas noites de domingo.
É este mesmo Teatro Farroupilha que desfila frente aos olhos da dona Esther Daniotti na tarde de um dia perdido de 1998, atendendo à curiosidade do pesquisador e sendo, de novo, Estelita Bell, pseudônimo que, em um dia também perdido, o grande ator e diretor Procópio Ferreira definiu:

– Fica meio cantora de tango, mas serve!


Estelita Bell
Entrevista realizada por Luiz Artur Ferraretto em 14 de julho de 1999.
O casal que inspirou Chico Anysio
2012

Fonte: CHAVES, Ricardo; BÍSSIGO, Luís. Zero Hora, Porto Alegre, 27 mar. 2012. p. 56.
Almanaque Gaúcho.


Chico Anysio
Entrevista realizada por Luiz Artur Ferraretto em 22 de janeiro de 2009
Radioteatro: quando o som cria imagens
2006
Luiz Artur Ferraretto

Corre o ano de 1938. Com base em uma leitura atenta de O Guarani, de José de Alencar, o radialista Pery Borges prepara uma peça em três atos para o Teatro Farroupilha, transmitido nas noites de domingo e então uma das atrações mais ouvidas no Sul do Brasil. O diretor e ator da PRH-2 – Rádio Sociedade Farroupilha, de Porto Alegre, redobra cuidados nesta produção que vai comemorar, naquele mês de setembro, os dois anos de sucesso do programa pioneiro em radioteatro no Rio Grande do Sul e o segundo do tipo em todo o país. Além do roteiro com as marcações de trechos para cada um dos atores, inclui uma listagem das trilhas musicais a serem utilizadas, quadro a quadro, como nas apresentações a que Pery se habituara nos seus tempos da Companhia Teatral de Procópio Ferreira. A dramatização radiofônica já superara, então, sua fase inicial, quando trechos de peças em cartaz na cidade eram apresentadas, sem maiores tratamentos radiofônicos, ao microfone. Na relativa precariedade das peerres da época, no entanto, não se definiu, ainda, uma linguagem própria, que diferencie as montagens do apresentado nos teatros e casas de espetáculo. Nos anos seguintes, ao contrário, toda uma rotina de trabalho vai se desenvolver, incorporando técnicas próprias que fazem das encenações hertzianas uma arte à parte.

A partir da década de 1940, com a novela preponderando sobre as peças únicas, a ficção radiofônica transforma-se em espetáculo que concentra grande quantidade de ouvintes. Em torno desta poderosa atração, surge toda uma infraestrutura específica. Na virada para os anos 1950, as encenações utilizam, de modo mais sistemático, todos os elementos básicos da linguagem radiofônica: a voz, a música, o efeito sonoro e o silêncio. Segundo Rubens Vidal, autor da reportagem A volta do folhetim, publicada em 1948 pela Revista do Globo, a utilização do som inclui, então, três áreas – sonoplastia, contrarregra e sonotécnica – distintas e complementares:
A primeira é a montagem sonora do programa: efeitos musicais que fazem fundo de cena ou que separam as cenas. Auxiliam, com a música, as palavras do intérprete. (…) Assim como os sábios pesquisam nos laboratórios, existem indivíduos que vivem nas discotecas procurando novos efeitos, tentando novas descobertas, novas ilustrações. O contrarregra encarrega-se de completar aquilo que as palavras não podem especificar. É o senhor dos mil ruídos. Barulho de passos, bater de portas, ruído de talheres, arrastar de cadeiras etc. A sonotécnica diz respeito à execução da parte musical dos programas pela mesa de controle e pelo operador.
Em um mercado que cada vez mais exige uma rapidez de linha de montagem na produção cultural, o aprimoramento dos técnicos diminui a carga de trabalho dos autores. A produção como um todo, graças a estes profissionais de trilhas e efeitos, tem de ser pensada considerando que diferentes tipos de sons provocam também reações diversas sobre a sensorialidade do público. A música e os efeitos exploram a sugestão, criando imagens na mente do ouvinte. São auxiliados pelo tom e pela flexão da voz do locutor ou apresentador. Assim, além de pontuarem a narrativa, os efeitos permitem ao público “ver” o que está sendo descrito e a música possibilita ao ouvinte “sentir” o que se transmite.

Nos dez anos que separam a montagem de O Guarani e a reportagem da Revista do Globo, não só a radiofonização em si, como consequência desta nova mentalidade, evolui, mas a interpretação vai se adaptando ao rádio. A constatação é também de Rubens Vidal:
Assim como o cinema é imagem, o radioteatro é voz e som. Ele começou a ser feito, primitivamente, por pessoas do teatro, e daí um terrível defeito: o artificialismo das interpretações. Os atores falavam alto, quase gritando, gesticulavam, gargalhavam com voz de tenor, numa luta titânica para serem ouvidos tanto pelos espectadores da primeira como da última fila. Ignoravam que o microfone tem uma vantagem: coloca todos os espectadores na primeira fila. Nas cenas de alcova – exemplificando – os segredos, os cochichos, são ouvidos no mesmo tom real. Com esta naturalidade, a novela deu um salto. 
Um bom ator de rádio não é apenas aquele que está de posse de uma bela voz ou que apresenta uma bela dicção e facilidade de locomover-se diante do microfone. Esses são requisitos para speaker, não para ator. Julgava-se que uma voz melíflua e agradável era o quanto bastava. Mas é apenas isto: interessa o que possui voz adequada para este ou aquele papel.
Se os efeitos sonoros retratam o ambiente, à voz cabe, com diferentes entonações, transmitir, além do conteúdo da narrativa, a emoção, associando-se assim às trilhas musicais utilizadas. Na época, muitos atores e atrizes submetem-se, por este motivo, a aulas de canto lírico, buscando aprimoramento e, assim, adequando-se às exigências do teatro radiofônico. Prática comum, portanto, é aprender a solfejar, ou seja, a entoar um trecho de uma música, pronunciando o nome das notas e procurando dar a cada uma delas o seu valor e acentuação corretos conforme o compasso e o ritmo exigidos. Os atores desenvolvem, deste modo, a capacidade de interpretação.

A voz indica, ainda, o papel que pode ser dado ao ator ou atriz, definindo tipos específicos para homens e mulheres. A do galã deve ser aveludada e romântica, situada entre o grave e o agudo. Sua contraparte feminina, a mocinha, poderá soar doce, suave e ingênua, ao interpretar a sofredora, vítima de vilões, inocente ante as maldades do mundo, ou insinuante, a sugerir possibilidades amorosas, em personagens agraciados pela sorte ou perseguidos por desventuras. A voz madura caracteriza o centro: dramático, quando transmite confiança e seriedade, e cômico, ao, pelo contrário, indicar descontração em tom de galhofa. Do vilão ou vilã, exige-se uma voz cortante, por vezes sibilante, indicando maldade na frase pronunciada entre os dentes ou na gargalhada soturna. Os caricatos capricham na voz esganiçada e de pronúncia deficiente, numa fala, por vezes, arrevesada em que predominam cacoetes e redundâncias. Há, ainda, os excêntricos, cuja voz, mais neutra, adapta-se aos sotaques estrangeiros ou aos tipos exóticos.

Tanto apuro técnico contrasta com algumas tentativas – sem dúvida bem-intencionadas – verificadas, vez por outra, nos últimos anos, em emissoras do Sul do país. A utilização de recursos radioteatrais aparece em pequenos documentários de cunho histórico, reconstruindo momentos considerados chave nesse ou naquele período. Os produtores, em sua maioria, oriundos dos departamentos de jornalismo, mesclam profissionais da própria emissora – seus colegas de redação ou de estúdio – com atores de teatro. Resultado: as vozes soam ora excessivamente juvenis para os papéis a elas confiados, ora gritadas em demasia como se diante do improvisado radioator ou radioatriz não estivesse um microfone, mas a plateia de uma grande sala a ser atingida em toda sua extensão pela projeção da fala. Em ambas as situações, aparece o mesmo artificialismo verificado nos primórdios da ficção radiofônica. É claro, fora a arte esquecida do tempo dos galãs, mocinhas, centros, caricatos etc., falta o punho forte do diretor a corrigir sutilezas de tons e exageros de impostação.
70 anos do Teatro Farroupilha
2007
Luiz Artur Ferraretto

Cartão distribuído aos fãs do Teatro Farroupilha (1942)
Além de Pery e Estelita, aparecem, entre outros, Ruy Figueira, locutor da versão gaúcha do Repórter Esso; Josué Guimarães, mais tarde, consagrado escritor; Walter Ferreira, futuro galã de radioteatro; e Renée Bell, mãe de Estelita.
Fonte: Acervo particular de Estelita Bell

O locutor Mario Pinto identifica a emissora:

– PRH-2 – Rádio Farroupilha, de Porto Alegre, 50 kW. Mensagens que vão mais longe!

Ao seu lado, Zênite Amaral começa uma espécie de jogral a marcar a abertura do programa, para, na sequência e após a trilha musical, Mario Pinto complementar, com sua voz forte e, a exemplo dela, também escandindo os erres na pronúncia bem típica do rádio de então:

– Num oferecimento exclusivo das Lojas Imcosul, a Rádio Farroupilha anuncia e apresenta…

– …o Grande Teatro Farroupilha

– …sempre com um original de categoria para o desempenho de um elenco também de categoria!

É a noite de 29 de julho de 1962. Nos próximos 60 minutos, vão se alternar ao microfone da PRH-2 algumas das vozes mais significativas da dramaturgia radiofônica do Rio Grande do Sul. Ali, estão Pery Borges e Estelita Bell, os pioneiros desta atividade no estado, eles próprios criadores, quase 25 anos antes, do Teatro Farroupilha, mais tarde rebatizado com o adjetivo “grande” a anteceder a sua denominação original. Como fizeram até 1945, ano de sua transferência para a Rádio Mayrink Veiga, do Rio de Janeiro, os dois interpretam e Estelita dirige. Só o texto – ao contrário daquele período anterior de nove anos –, nesta apresentação especial, não é de Pery. O roteiro de Uma mulher singular vem da máquina de datilografia de Erico Cramer, que, em carreira paralela à de Pery e Estelita, escrevera e ensaiara a primeira radionovela do Rio Grande do Sul, O solar dos Alvarengas, assim mesmo com este “s” a mais e levada ao ar a partir de 28 de março de 1943, quando ele ainda assinava com o nome artístico de Roberto Lis. Em um dos papéis principais, aparece Ernani Behs, um dos maiores galãs do rádio gaúcho. Fora isto, há a sonoplastia e a sonotécnica de Victor Stoebe, complementada pelos efeitos de estúdio de Abel Gonçalves.

Para quem sintoniza a emissora nessa noite de domingo, fica a homenagem da Rádio Farroupilha a Luiz Pery Borges e Esther Daniotti, conhecidos como Pery e Estelita, “marcos da era radioteatral no Sul”, como registra o Diário de Notícias, dias antes, ao anunciar a presença dos dois – “a dupla de ouro” dos anos 1930 e 1940 – nas comemorações do 27º aniversário da PRH-2. Quarenta e cinco anos após a sua transmissão, esta edição do Grande Teatro Farroupilha constitui-se no único registro sonoro do programa que mobilizou audiências nas noites de domingo, de 1937 até o final dos anos 1960.

A gravação é uma prova do valor de Pery e Estelita e merece ser lembrada neste dia 5 de setembro de 2007, quando se completam sete décadas da estreia do Teatro Farroupilha, terceira atração deste tipo a entrar no ar no rádio brasileiro. Merece ser lembrada porque comprova o descaso infinito deste país para com a sua memória. Quando Esther Daniotti Borges, a Estelita, faleceu há alguns anos, foi a consciência de um brasileiro anônimo como tantos que fazem deste país uma pátria a ser reivindicada. Não um político. Não um doutor a excretar arrogância em confortáveis gabinetes acarpetados. Ao longo dos anos, Renato Rezende Cordeiro apreendeu a respeitar aquela senhora que se dividia entre papéis na televisão e no teatro. Uma cordial troca de palavras na entrada do edifício no centro do Rio de Janeiro. Ela passando, ele atrás do pequeno balcão de madeira da portaria. Renato salvou do lixo uma fita com a gravação lá de 1962. Salvou muitos outros materiais que iriam para o lixo ou seriam até incinerados. Aos 94 anos, Dona Estelita sofreu uma queda e fraturou o fêmur, vindo, tempos depois, a falecer. Pois foi o Renato que ajudou a socorrê-la junto com a empregada, Dona Maria, uma espécie de anjo da guarda da velha atriz. Numa carta, ele me diria:

– Uma atriz nota 10 como a Dona Estelita não poderia cair no esquecimento. Consegui resgatar a história desta mulher, que tive o prazer de conhecer e, quando ajudei no seu socorro, o privilégio de ter em meus braços a maior atriz do rádio do Rio Grande do Sul, porque não dizer do Brasil.

E nisto, para quem duvidar, o Renato concorda com Chico Anysio, grande admirador de Estelita Bell. Entrevistado pela Revista do Rádio, nos anos 1960, o humorista seria taxativo apontando-a como a melhor atriz do rádio brasileiro. Só para ter uma ideia, na mesma reportagem, Chico colocava, em posição idêntica, mas na TV, Fernanda Montenegro.

Neste dia 5 de setembro de 2007, há que se lembrar do Renato mesmo. A ele, o Rio Grande do Sul deve parte de sua memória: roteiros e mais roteiros, fotografias, gravações e outros documentos.
E assim Pery e Estelita seguem vivos.

Grande Teatro Farroupilha (29 de julho de 1962)
Fonte: Acervo particular de Estelita Bell.

 

Um Perfume do Passado exalado pelas ondas do rádio
2021
Elisa Kopplin Ferraretto

Roteiros dos 117 programas Perfume do Passado (final dos anos 1930)
Fonte: Acervo de Estelita Bell.

Pery Borges e Estelita Bell, criadores do radioteatro no Rio Grande do Sul, fizeram enorme sucesso ao microfone da Rádio Farroupilha, durante sete anos, com o Teatro Farroupilha. Mas a produção da Dupla de Ouro – como eram chamados carinhosamente pelos ouvintes – em quase uma década de atuação na emissora não se limitou a esse programa. Além das 365 peças de três atos encenadas na atração dos domingos à noite, foram responsáveis por 735 esquetes, centenas de crônicas e monólogos para audições de quartos de hora e também por outras atrações. Uma delas foi Perfume do Passado, transmitido todas as segundas, quartas e sextas-feiras.

Na noite de 2 de maio de 1938, Pery anuncia:

– Ouvintes da PRH-2, boa noite. Eu não sei se alguém já chamou a saudade de “o perfume do passado”. Há milhares de definições por aí e nenhuma bastante clara para significar o “delicioso pungir do acerbo espinho” do poeta. Estou que a própria palavra eloquente, que se gaba de intraduzível, é ainda bem inexpressiva diante da delicadeza e, às vezes, da amargura do sentimento a que serve de nome.

Entra Estelita interpretando a Canção da Saudade, que ficou famosa na voz de Vicente Celestino.

Saudade palavra doce

Que traduz tanto amargor

Saudade é como se fosse

Espinho cheirando a flor.

Saudade, ventura ausente,

Um bem que longe se vê,

Uma dor que o peito sente

Sem saber como e por que

Volta Pery:

– Perfume do passado! As ondas hertzianas vivem cheias desse perfume, pela execução inteligente de seus programas. Chamam-nos de vários nomes: Hora da Saudade, Recordar é Viver, Naquele Tempo... PRH-2 e seus ouvintes desde este instante o terão sob o romântico apelido de Perfume do Passado! Quero que a nossa saudade seja perfume, para que a sintamos suavíssima, sem lágrimas nos olhos, sem aperto no coração, sem pena nem remorsos, mas apenas com saudade.

Logo depois, anuncia a música Amor Perfeito, interpretado pela orquestra da PRH-2, regida pelo maestro Salvador Campanella:

– A nossa caixa de música vai abrir-se. Vamos sentir, subindo como um perfume, as notas musicais de uma página do passado.

E arremata após o final da execução:

– O maestro Campanella e seus colegas nos fizeram ouvir uma canção que talvez fizesse sonhar muita cabecinha linda, hoje embranquecida, nos serões e saraus daquele tempo. Mas vamos dar a palavra ao Ruy, um instante. Depois voltamos às nossas recordações.

Logo após os reclames comerciais lidos pelo locutor, começam as histórias.

– Voltemos à rua Venezianos, numa noite de maio há 25 anos, entre o alarido da garotada travessa e a cantoria ingênua das moças de então. Entre a roda travessa dos guris e a roda alinhada das meninas, um lampião de querosene. Luz mortiça, sonolenta, piscando como uma criança com sono. E, sob ele, mudo e quedo, o vulto de um rapaz... horas a fio... e lá, a mais de 20 metros, no quadro escuro de uma janela, uma cabecinha mal distinta. Eram os amorosos do tempo. Toda noite, aquela adoração muda... Para cobrar o silêncio resignado daquela afeição, altas horas, a mudez do bairro era despertada pela voz, nem sempre harmoniosa, do trovador enamorado. Ou então um grupo de amigos, boêmios de alma enluarada, dizia a Julieta o amor de seu Romeu, pela voz harmoniosa dos violinos.

E volta a orquestra, desta vez com Estrela Dalva.

Assim vai seguindo a noite de estreia de Perfume do Passado, que finaliza com um pedido de Pery aos ouvintes:

– A iniciativa deste programa está realizada. Fica aqui o seu primeiro passo. Telefonem, escrevam, dizendo se ele merece o vosso acolhimento, ou quais as suas falhas. Perfume do Passado quer acordar nos velhos uma saudade boa e mostrar aos moços as belezas e os encantos daquela época. Uns e outros podem colaborar conosco, enviando-nos músicas antigas, canções e anedotas de então, lembrando feitos e acontecimentos, apontando tipos que estejam quase esquecidos... Tudo que se viveu naquele tempo e que hoje chega até nós, suavemente, como um perfume do passado!

E os ouvintes telefonam, escrevem, mandam suas histórias, de todos os cantos do Rio Grande. Porque sim, Perfume do Passado mereceu o acolhimento do público e conquistou para Pery e Estelita uma nova legião de fãs. No total, foram ao ar 117 edições do programa. 


Caderno no qual Pery Borges fazia anotações e guardava recortes para o Perfume do Passado
Fonte: Acervo de Estelita Bell.
Um pouco de sorte e muitas intenções positivas
2013
Luiz Artur Ferraretto 

Em setembro de 2011, por coincidência o mês de aniversário do Teatro Farroupilha, tocou o interfone do meu prédio no Bonfim, tradicional bairro de Porto Alegre. Um cidadão queria saber se morava ali algum parente ou conhecido de certa Esther ou Estelita. Muito desconfiado nestes tempos de insegurança total, resolvi descer até a frente do prédio, onde um cidadão me esperava também com cara apreensiva. Meia hora depois, conversávamos já convencidos das boas intenções de ambos. O nome dele: Ricardo da Silva Fernandes. Pois não é que ele cruzara por acaso no Rio de Janeiro com o Renato, no prédio onde Estelita Bell morara. E não é que trouxera para o Rio Grande do Sul a parte restante do acervo da atriz. E não é que ele, portanto, tinha em seu poder, dezenas e dezenas de fotos e documentos. Deem uma olhada só em algumas pérolas e curiosidades desse tesouro:

Lamartine Babo, com a bandeira do seu clube do coração, o América, ao fundo (1946)
Fonte: Acervo particular de Estelita Bell.

Pedro Vargas, cantor e ator mexicano (anos 1940)
Fonte: Acervo particular de Estelita Bell.

Virginia Vargas, mais tarde esposa do humorista Carlos Nobre (anos 1930)
Fonte: Acervo particular de Estelita Bell.


Ione Pacheco, atração infantil do rádio porto-alegrense e, mais tarde,
esposa de Maurício Sirtosky Sobrinho (anos 1930)
Fonte: Acervo particular de Estelita Bell.

A respeito do Ricardo, vale o mesmo dito sobre o Renato. Soube ver valor no que muita gente – muitas vezes, as chamadas autoridades – descartam. Vai demorar ainda para eu ter uma ideia completa do acervo. E nem sei se terei tempo ou conseguirei fazê-lo. Sei que, dias depois de termos conversado, fui até a casa dele junto com o Luciano Klöckner, professor da PUC-RS, e recolhemos, maravilhados, o material. Valeu foto e tudo a registrar confluências de boas intenções.

Luiz Artur Ferraretto, Ricardo da Silva Fernandes e Luciano Klöckner (2011)
Fonte: Acervo pessoal.